data-filename="retriever" style="width: 100%;">Existe uma economia da pandemia? O professor Francisco Eduardo Pires de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que sim. Em artigo recente (Revista de Economia Política, abril-jun. 2021), ele defende a ideia de que, assim como houve uma economia de guerra, também existe uma economia da pandemia. Porém, neste caso, a política macroeconômica apropriada é singular e diferente da que se verifica na economia usual. A economia da pandemia, ao contrário da economia de guerra, é uma macroeconomia da recessão. Mas não igual ao conceito de recessão tradicional. A recessão aqui é um evento necessário, e até mesmo desejável, se o objetivo for salvar vidas.
Diante de pandemias como a da gripe espanhola (1918-1920) e a Covid-19, caracterizadas por alto nível de contágio e falta de vacinas, o principal remédio para salvar vidas é o isolamento social. E este requer evitar aglomerações nas atividades de consumo "intensivas em contato" e isso exige redução do consumo e produção, ou seja, recessão. Enquanto a pandemia não estiver avançada na sua fase descendente, a recessão é a principal medida de saúde pública.
A questão da recessão é complexa em razão da dualidade da economia. De um lado, existe um setor interditado total ou parcialmente, denominado setor "circo", por implicar aglomerações e que opera com oferta e demanda abaixo do potencial. De outro lado, existe outro setor que não sofre interdições, cuja demanda está sobreaquecida pelas políticas de transferência de renda, denominado de setor "pão", por motivos mais ou menos óbvios. Essa dualidade da economia cria um dilema para a política econômica: as políticas de apoio a empresas e famílias do setor circo gera inflação crescente no setor pão. A solução para o dilema depende da desinterdição completa do setor circo. Mas esta não é viável enquanto a população suscetível à doença não tiver sido totalmente vacinada ou que atinja o que alguns chamam de "imunidade de rebanho".
É consenso entre os economistas a respeito do fato de que, diante da mortalidade imposta pela Covid-19, era imprescindível fazer tudo o que fosse necessário - inclusive incorrer em déficits fiscais sem precedentes - para enfrentar as consequências da pandemia.
No Brasil, o Congresso aprovou o chamado "orçamento de guerra", que permitiu ao governo descumprir o teto de gastos. Porém, como financiar esse déficit tão elevado? Na verdade, existe três maneiras: colocação de títulos da dívida pública, pela emissão de moeda ou pela liquidação de ativos (no caso brasileiro, principalmente reservas internacionais). No nosso país, as três maneiras foram utilizadas, porém, com preponderância da colocação de títulos da dívida pública.
É fato que a restrição ao consumo de bens e serviços intensivos em contato, típicos da cesta de consumo das camadas da população de alta renda, elevaram a sua propensão a poupar. A renda do setor privado subiu muito como proporção do PIB, enquanto o consumo diminuiu por causa das restrições associadas à pandemia. Sendo isso verdadeiro, a pandemia criou, ao mesmo tempo, um grande problema fiscal e a sua solução - a "poupança forçada" das camadas da população de renda mais alta, que resultou da pandemia e de seu enfrentamento.
Como a dívida adicional é toda interna, deixou-se uma dívida, mas também uma riqueza financeira da mesma magnitude da dívida para as gerações futuras. Se fosse possível taxar a riqueza financeira adicional, a questão da dívida adicional estaria resolvida. Não havendo condições políticas para isso, o problema que fica é que uma dívida grande sempre traz maior instabilidade futura.
A herança da geração futura deverá ser o agravamento do conflito distributivo. A distribuição de renda, que beneficiou os mais pobres durante a pandemia, cessa com o fim do auxílio emergencial. Mas a riqueza financeira líquida ampliada do setor privado, em poder das parcelas mais ricas da sociedade, tenderá a influenciar negativamente a distribuição de renda futura, via recebimento de juros. Já a questão mais conjuntural de recuperação da economia, ao contrário do que supõe a teoria econômica tradicional, não está na política macroeconômica e sim na vacina. Isso porque só com o fim do risco associado aos contatos e aglomerações será possível restabelecer plenamente a produção e o emprego no setor circo, que, como vimos, hoje opera abaixo da sua capacidade.